Cânone é um termo que deriva do grego “kanón”, utilizado para designar uma vara que servia de referência como unidade de medida
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A escritora argentina Betina González, autora de A obrigação de ser genial, conta no livro uma anedota sobre o estilo cirúrgico, desafetado da escrita de Raymond Carver, resultado não do trabalho de Carver, mas de Gordon Lish, seu editor. Alérgico ao que chamava de excessos sentimentais, ou seja, “aqueles momentos em que o texto sucumbia à tentação de explicar ou insistir demais na expressão dos sentimentos, seja nas palavras do narrador, seja no que os personagens faziam ou diziam”, Lish cortou 50% do manuscrito e mudou o final de 14 das 17 histórias do livro De que falamos quando falamos de amor.
“Carver, em seus originais, mostrava outra coisa: a necessidade de entender a maldade, a discordância e a angústia. Não do lado de quem as sofria, mas do lado de quem as infringia. Ele não era o dono daquele olhar gélido”, diz González.
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Estamos falando sobre literatura. Alguém cita o livro novo de uma autora que todos ali conhecem. Um homem revela uma fofoca sobre a vida pessoal desta mulher, para depois dizer que não gosta do trabalho dela. Questionado sobre mulheres que admira na literatura, ele cita dois, três nomes, nenhuma delas é da literatura. Depois se lembra. “Aquela mulher, uma negra fantástica, ai, ela escreve ficção científica”… mas não lembra o nome dela.
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Betina González:
“Agora acontece que já não se pode mais ser a feia esperta, nem a reclusa do sótão. Não basta escrever romances. Nem importa que ele seja bom. É preciso ser linda, brilhante, simpática, capaz de aparecer na TV e gerar seguidores nas redes sociais, de citar Borges e Judith Butler - se possível na mesma frase em que dá sua opinião sobre política externa e “o destino da América Latina”. Se além de tudo isso, você tiver filhos, tanto melhor, para que não haja suspeita de ressentimento nem de “mas” que avisem que os cinco livros que você publicou estão no lugar das crianças; e mais, provavelmente só aconteceram graças à sua ausência: assim mesmo”.
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Noite quente, boteco com mesas na calçada. De onde se está, é possível ouvir a voz pastosa de um homem explicando para os seus amigos, uma mulher de sua idade, provavelmente uma namorada, e o filho dela, um jovenzinho, alguma coisa sobre a Bíblia. Ele fala alto, todos fazem silêncio para ouvi-lo, pensamos que ele deve estudar isso. É difícil não acompanhar a conversa, que migra para os esportes, depois para política externa. Ele muda de assunto, mas não muda o tom. Ele deve estudar também isso. Da distância em que estamos, só uma voz se ouve, e escutamos menos as palavras, mais a forma como elas vão se encadeando numa coisa só. Uma ladainha.
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Ainda Betina González:
“As escritoras são coroadas, os escritores são entrevistados.”
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Para quem se interessar, aqui tem Luisa Geisler falando sobre Carver ser dois - ele e Lish. Ela escreve o texto para promover 68 Contos de Raymond Carver, publicado pela Companhia das Letras, e em cuja edição é possível confrontar trechos dos originais com o texto final.
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Desobedecer os cânones!
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A epígrafe do livro de Betina González é de Anne Carson:
“Se você não é a pessoa livre que deseja ser, encontre um lugar onde possa contar a verdade sobre isso. Você poderia sussurrar diante de um poço. Você poderia escrever uma carta e colocá-la em uma gaveta. Você poderia inscrever uma maldição em uma fita de chumbo e enterrá-la para que ninguém a lesse por mil anos. Não se trata de encontrar um leitor, trata-se de contar.”
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Conta!