Afetos Ferozes: despedir-se da mãe morta, encontrar a mãe viva
minha mãe não era, é
minha avó nasceu no interior de mim
minha bisavó baiana eu imagino
minha mãe não era, é
menina
minha avó nasceu no interior de Minas
minha bisavó baiana eu imagino
minha mãe não era, é
é
menina
minha avó nasceu no interior de Minas
e se matou por lá também
minha bisavó baiana eu imagino
só
Maria, canção de Maria Beraldo
***
É fácil escrever. Pensar é que é difícil. Saber o que você pensa. O doloroso processo de entender alguma coisa. É assim que Vivian Gornick fala sobre seu ofício. A escritora norte-americana, que começou no Novo Jornalismo, já passava dos 30 anos quando descobriu que havia nascido para a memória.
Na literatura a memória é considerada um gênero de não ficção e, embora tenha uma intenção de verdade, ela intencionalmente assume que não dá conta de capturar a realidade, porque algo nos escapa. Porque, como enunciou Freud, não somos senhores de nossa própria casa. Não somos capazes de enxergar tudo, muito menos de elaborarmos tudo aquilo que se passa conosco, que fazemos daquilo que fazem conosco.
Gornick escreve memórias. A memória de sua existência. Começou com Afetos Ferozes, o livro que ela publicou em 1987 nos Estados Unidos e que em 2019 chegou ao Brasil, mesmo ano em que foi eleito pelo New York Times como o melhor entre 50 outros títulos do gênero dos últimos 50 anos. Na narrativa Gornick evoca com amor, fúria e uma escrita bela e incisiva sobre aquilo que a romancista Edna O’Brien chamou de “o cerne do desespero feminino”: a natureza edípica não reconhecida do vínculo mãe-filha.
Afetos Ferozes trata da relação da autora com a sua mãe, cujo nome não conhecemos, mas que tão bem conseguimos enxergar nas cenas, expressando-se livremente com sua atitude firme, seu inglês sem sotaque, uma pessoa consciente de seus pensamentos e sentimentos mais elevados. Gornick escreve também para falar de sua trajetória, como a de tantas mulheres de sua (nossa) geração, buscando encontrar seu lugar e sua voz no mundo.
No tempo da escrita, Vivian tem 47 anos e uma mãe de 80, e elas caminham juntas pelas ruas de Manhattan. Falam sobre a infância da filha, conjugada no pretérito perfeito, quando viviam no Bronx com sua família num prédio de 20 apartamentos nos quais residiam outras famílias como a delas, compostas por crianças, homens ausentes e mulheres que, em suas palavras, mal se conheciam, às vezes nem se falavam, mas que viviam umas em cima das outras e entravam e saíam das casas umas das outras.
A mãe foi só mãe por muito tempo depois de ter nascido a filha. Fez o que o marido, a sociedade esperava dela, colocando o amor como a coisa mais importante na vida de uma mulher. Romanceou o casamento, uma aliança sem intimidade, a cama dos dois flutuando castamente no espaço público, mas uma relação com propriedades extraordinárias, que tanto a compensava, quanto era a razão do seu tédio e da sua ansiedade.
É curioso que a gente saiba pouco do pai e, em contraste, conheça tanta coisa da mãe, mas sem conhecer o seu tamanho e peso, por exemplo. Da forma como Vivian a conta, me causa a impressão de ser uma mulher sem corpo. Uma entidade. O terceiro na cena familiar se apresenta em Nettie Levine, a nova vizinha, jovem e exuberante, com sua cabeleira de vermelho vivo, a la Greta Garbo, e uns olhos verdes amendoados, que se muda com o marido, um marinheiro judeu que, a exemplo dos demais pais de família, passa mais tempo fora do que dentro de casa.
Nettie atrai os olhares de todos, inveja e curiosidade, e passa a fazer parte daquele mundo de mulheres. É Nettie quem acorda na menina Vivian uma outra possibilidade de existir: uma mulher com um corpo! Bonita, desejada, portando uma aristocracia de caráter físico. Ela parecia intocável, diz Vivian.
E prossegue:
Era Nettie que eu queria ver, só ela. E tinha vontade de tocá-la. Minha mão estava sempre ameaçando disparar para longe de meu corpo na direção do seu rosto, do seu braço, do seu quadril. Eu ansiava por ela. Nettie irradiava uma espécie de promessa da qual eu não tinha forças para me afastar, eu queria… eu queria… eu não sabia o que queria.
Quando o marido de Nettie morre em combate, e ela ainda não deu à luz o primeiro filho que espera dele, a mãe de Vivian se compadece de seu desamparo e elas se aproximam. Ganhamos a beleza de Nettie em nossa cozinha todos os dias, e Nettie ganhou a proteção da minha mãe no prédio. A lealdade que jura à vizinha não impede a mãe de julgá-la. Incomoda especialmente o vaivém de homens.
Alguns anos mais tarde, é o pai de Vivian que morre e suas lembranças desse evento parecem saídas de um romance de Gabriel Garcia Marquez. Ocupando o centro dramático, a mãe chora tanto que as lágrimas empurram as paredes dos dois quartos e carregam os filhos para longe. Órfã! Ó, Deus, você é uma órfã!. Sobre a mãe enlutada, diz a filha: ninguém tinha coragem de lembrá-la que, segundo o costume judeu, a pessoa é órfã quando a mãe morre, e só meio órfã quando o pao morre. Talvez não fosse exatamente questão de coragem. Talvez eles compreendessem que ela na verdade não estava falando de mim. Estava falando de si mesma. Estava consumida por um sentimento de perda tão primitivo que havia passado a carregar todo o sofrimento. O sofrimento de todo mundo. O da esposa, o da mãe, o da filha. O sofrimento a tomara e a esvaziara.
Na semana do luto pelo pai, a filha encontra conforto nos braços não da mãe, mas de Nettie. A vizinha toca seu cabelo, seu ombro, o toque se torna insistente, Vivian se sentindo puxada, disposta, interessada, excitada, um fascínio sonolento, um vácuo negro, terror, e se solta de seu abraço. Conta ela que seu lugar era com mamãe. Com ela a questão era clara: eu tinha dificuldade para respirar, mas não corria perigo.
Penso na mãe morta de André Green. Diz Green que a mãe morta não é a mãe que de fato morreu. Seu corpo respira, mas morreu psiquicamente - deixou de ser percebido pela criança como fonte de vitalidade para se tornar uma figura distante, átona, quase inanimada. É este modo de existir, uma ausência na presença, que vai fundar uma nova relação do sujeito com a realidade e que terá consequências importantes para a sua vida adulta.
Acontece que, quando Green fala da mãe morta, fala de algo que acontece em um momento mais inicial da vida e que deixa uma cicatriz na psique do sujeito, de natureza narcísica. Não é o caso de Gornick, pelo menos no que diz respeito à temporalidade, pois quando seu pai morre ela tem 13 anos. Entretanto, reconheço traços descritos por Green no desgosto de Vivian com o seu ofício de escritora e os relacionamentos com homens não disponíveis. Penso se seria possível que ela tenha morrido muito antes de o pai ter morrido.
Volto à trama. Quando conhece o futuro marido, que se tornará pai de seus filhos, dentre os quais Vivian, a mãe e ele estão envolvidos com o Partido Comunista, ela mais ativa, empoleirando-se em caixas de sabão para exigir justiça econômica e social. Mas abandona tudo para dedicar-se a eles, e não sem conflitos. De acordo com a filha, a mãe era uma cozinheira de competência entediada, uma faxineira furiosamente rápida, uma lavadeira dos demônios.
(...) não ignorava que o mundo era maior do que a cozinha, a janela, e às vezes queria-o. (...) Revoltava-se com a falta de sentido da vida de uma mulher, depois ria com prazer diante de algum assunto complicado em andamento na viela. Passiva pela manhã, rebelde à tarde, construída e desconstruída diariamente.
No contraste com a mãe, Nettie é a figura desejante, desejada, ela e seu modo de criar graça e beleza onde antes não havia nada disso. Quando Nettie conta suas fantasias (imaginando cenas, não seria o máximo se, que invariavelmente terminavam nela sendo salva por um homem rico, culto e perdidamente apaixonado), ensina a Vivian que é possível inventar histórias, mas a menina prefere as que mostram que a vida é trágica. Estar em estado de tragédia era ser salvo do que eu via como as dores prosaicas da minha própria vida. Elas pareciam desprovidas de significado. Ser salva da ausência de significado, para mim, era tudo. A amplitude de significado era a redenção. Era o começo de uma escritora adolescente: eu começara a mitificar.
Essa ausência de sentido é outra das marcas do complexo da mãe morta, sustenta Green. E embora Vivian cresça, saindo de casa aos 24 anos, quando a casam na sala de estar, sofre num casamento com um homem que, como ela, ama as artes, mas cuja relação opera nas vias do que a autora chama de fantasia espiritual. Não queríamos um ao outro nem química, nem romanticamente. Nosso suplício era que teríamos de viver para chegar a essa conclusão tão simples.
Ele não falava, eu não falava.
Nessa época a mãe e Nettie já romperam, mas a vizinha segue se fazendo presente no limiar de seus pensamentos, em especial quando ela e o marido faziam amor, com toda a sua contundência e reprovação. Ela se materializava no ar, como se me quisesse dizer: “Foi para isso que desperdicei com você meus conhecimentos tão duramente adquiridos?”.
Separa-se, manda fazer para a casa nova uma escrivaninha do seu tamanho, tornando-se uma mulher nova, liberada e esquisita durante o dia, mas sofre por não conseguir escrever. Se eu conseguisse falar, o que diria? E para quem? À noite, deitada no sofá olhando para o espaço, a mãe também se materializava no ar, como se dissesse: “Não tão rápido, minha querida, ainda temos assuntos a tratar”. Envolve-se com homens emocionalmente indisponíveis, sente-se infeliz. Tenta escrever, sente-se infeliz. Começa a fazer análise, começa a pensar sobre a falta de tempo, de fôlego. Sobre sentir-se acorrentada à máquina de escrever. Por que não se afasta desse corredor estreito e escuro? Não há resposta. E os homens?, pergunta a analista. Ah, pelo amor de Deus, acho que não consigo aprender a dar conta dessa, diz Vivian. E a analista responde: Você precisa. Você precisa dar conta do trabalho e precisa dar conta do amor.
Vivian sabe que precisa seguir se deslocando. Não apenas na análise, mas também nas longas caminhadas com sua mãe, falando da vida vivida, da vida não vivida. Falam sobre a morte do pai e os vinte e cinco anos seguintes, a mãe trabalhando o dia inteiro para toda noite reencontrar a depressão que a esperava feito fosse um banho quente. Vivian se recorda das brigas, a expectativa frustrada de que a mãe a adorasse, de reconhecer nas palavras dela o melodrama da repressão, a malícia da passividade, a raiva pela ausência de poder. Começa a reconhecer na mãe uma pessoa que, como ela, tem desejos, desejos simples, mas inegociáveis. Seu bordão “é ridículo” aprendeu com a mãe. Foi ela que lhe deu esse rosto.
Eu sou a filha da minha mãe.
Vejo Vivian passar da posição esquizo-paranóide à depressiva. Persiste a cicatriz viva, como Marion Minerbo vai falar do trauma, mas já não sangra ao primeiro toque. Nesse novo lugar conversam abertamente, a mãe contando que o amor do pai era tudo o que tinha e era bom amar o amor dele. Cabem também conversas sobre coisas nunca ditas, como o aborto que a filha fez, e em seguida a mãe subindo a aposta, para contar como foi em cada uma das três vezes em que recorreu ao serviço.
Há um trecho em especial que me chama muito a atenção:
Mãe, se fosse hoje e papai dissesse que não queria que você trabalhasse, o que você faria? Ela olha para mim durante um longo momento. Está com oitenta anos. Sua visão está fraca, seu cabelo está branco, seu corpo está frágil. Toma um gole de chá, pousa a xícara e diz calmamente: “Eu diria pra ele ir se foder”.
Na relação entre mãe e filha há uma camaradagem peculiar. Amor, sim, mas também rivalidade, culpa, inveja, ironia, raiva - quente e nítida, erótica em seu poder de nos exigir atenção. O que muda é que nenhuma das duas quer se manter no papel de beligerante uma frase só mais que a outra. Nossa verdade cotidiana é o fluxo. Enquanto houver vida, escolhem ser duas pessoas espantadas por estarem no mundo juntas, ao invés de se centrarem no que cada uma não está obtendo da outra.
Chego à última página do livro pensando que Vivian deu conta. Recusando tanto o pensamento mágico de Nettie quanto a rigidez da mãe, inventou seu jeito de ser mulher. Ficou ali bem no meio, enxergando como a vida é difícil, uma glória e um castigo. Faz seu trabalho ser relevante, a ponto do New York Times considerá-lo o melhor de seu gênero nos últimos 50 anos. Penso em minha mãe, minhas filhas. É fácil escrever. Pensar é que é difícil.