como ter esperança é uma pergunta e a resposta é
Eu estava escrevendo sobre um livro que li em três dias. Rebecca Solnit, Recordações da minha inexistência. É um um livro das memórias dela, sobre os caminhos que percorreu para se tornar quem é. Embora habite minhas estantes já há alguns anos, e eu grosseiramente poderia te apresentar a relevância dela falando em mansplaining, esse termo tão lindamente traduzido como macho-palestrinha, mas isso não dá conta. Eu não tinha a menor ideia.
Uma das coisas mais legais que ela faz em Recordações da minha inexistência é desenhar os caminhos que foi percorrendo, desde a infância, filha de um homem que considerava seu direito de bater em mulheres e crianças, e que, nem bem crescida, aprendeu a se encolher, a se esgueirar e desaparecer da vista dos homens que ameaçavam a sua integridade física. Uma mulher que, mesmo nos lugares supostamente seguros, ao recusar as fórmulas prontas e reivindicar para si um lugar de pensar, foi acusada de não ter credibilidade, ser confusa, não ter competência para lidar com os fatos.
Mas de todas as coisas, acho que a coisa que mais me surpreendeu a respeito dela é como ela tem fé na vida, caramba, como? Embora reconheça que vez ou outra seja tomada por esta convicção de que o agora é uma planície lisa que se estende ao infinito, sem florestas para aliviar a monotonia, sem montanhas se erguendo, sem portas ou passagens que convidassem a sair dali - o terror de que nada vai mudar coexistindo, de alguma forma, com o terror de que algo terrível vai acontecer, de que nada de alegre ou prazeroso merece confiança e o que é temido está logo ali à espera.
[pausa para respirar, ufa, porque, pelo menos pra mim, explica direitinho o que se passa)
Solnit escreve assim, seu texto intencionalmente pessoal, lírico, se debruçando sobre fragmentos para montar novamente o mundo, ou rasgando um pedaço dele para descobrir o que está escondido embaixo. Ela está interessada em descobrir como as ideias passam das sombras e das margens para o centro, e como o centro gosta de esquecer ou ignorar essas origens. As margens, ela diz, são também o lugar em que a autoridade diminui e as ortodoxias se enfraquecem. Não é uma coisa sobre a qual a autora teoriza. Ela coleciona histórias que fazem mudar as histórias fundamentais, os livros escolares, os nomes de lugares, as práticas de gestão da terra e, por vezes, as leis.
Fui dar uma olhada em outras coisas produzidas a respeito: Hope in the dark é um texto curto que fala, dentre outras coisas, como o desastre se parece muito com a revolução, perturbação, improviso e a sensação de que qualquer coisa é possível. Já Paradise built in hell é sobre como as pessoas viveram depois que o chão tremeu e destruiu San Francisco em 1906 ou matou 45 mil pessoas México em 1985, ou que o furacão Katrina varreu Nova Orleans. Sobre a pandemia, em um artigo de maio do ano passado, o mundo já quarentenado, ela falou sobre a importância da gentileza, da solidariedade.
A essa altura penso numa cena que testemunhei no sábado, um encontro no Zoom, e nele uma mulher, uma jornalista que inclusive vai ganhar um prêmio agora em abril, contando de como seu trabalho vem cada vez mais sendo cerceado, ao ponto de decidirem que agrotóxico não é um tema relevante. Ali entre amigos ela chorou ao lembrar da história que ouviu, a morte numa única pulverização de 60 galinhas de uma família inteira que tirava dali seu sustento. Penso no homem que abriu o microfone logo após a fala dela, pra dizer que não dava para olhar para o passado, que era preciso olhar para o presente, para o futuro… algo sobre fazer a revolução, eu acho. Penso em Solnit de novo, antes de chegar na parte da esperança, dizendo que a nossa cultura pensa que escutar é o estado natural da mulher e que discursar sobre as coisas é direito dos homens. Que, quando ousam sair de seus lugares, é como se tivessem permanecido em silêncio.
Penso que é verdade, mas não ali, naquele sábado, naquela roda, porque uma moça pediu a fala na sequência do homem, para dizer o quanto a fala da jornalista vem da sua experiência não num passado, mas nesse presente contínuo que se desenrola, esse terror de que algo terrível vai acontecer, de que nada de alegre ou prazeroso merece confiança e o que é temido está logo ali à espera.
Lembro da cena e penso em bell hooks - mais especificamente no prefácio que assinou Mariléa de Almeida: a coragem não está apenas em denunciar o outro, mas igualmente na capacidade de realizarmos uma dobra sobre nós mesmas, a fim de avaliarmos de que forma reproduzimos aquilo que estamos denunciando.
Solnit tem esperança e isso me emociona. Foi esperança também que ouvi em Viviane Mosé, quando falou sobre pandemia e o valor da vida, dizendo que nunca a gente esteve tão iguais uns aos outros, e que nesse momento em que tudo desmorona, tudo o que fizermos é mais capaz hoje de fazer a diferença que jamais antes faria. E eu fico pensando nisso: que a esperança tem a ver com escolher um lugar para olhar, mas também com fazer a dobra. A dobra, eu acho, é o trabalho mais importante de todos.