((conexão Heti-Calle)) - costuras entre arte, verdade, Verdade, o sentido de todas coisas
Oi, como você tá?
Ando pensando muito em como não desesperar diante do que temos vivido. Já falei 30 vezes aqui, não? Que propus, e está rolando, outro desses circuitos em que mulheres leem mulheres. Que são histórias de mulheres sendo filhas de outras mulheres. Que juntas descobrimos que a Mãe não existe, que por isso todo mundo tem um buraco, que toda relação é viva, que a palavra é uma tentativa de dar contorno pro vivido... E daí tem dias em que morrem quase duas mil pessoas, chamam de mimimi, minha vista embaça, eu perco o chão, a força, de que adianta fazer qualquer coisa? E daí eu vou pra roda e renovo a esperança, porque ali tem um brilho no olho que faz o meu olho brilhar também.
No encontro de ontem falamos sobre Maternidade, da Sheila Heti. É um romance no qual a protagonista investiga seu desejo de ser mãe. Numa entrevista sua, ouvi ela contar que demorou oito anos para atravessar o labirinto e que escolheu não “cortar a gordura”, porque a gordura é a própria vida. Sim, quando faz isso, ela assume o grande risco de talvez perder uns leitores pelo caminho. Mas é a sua escolha. Heti fala que seu livro é como um quadro que precisa ser apreciado cena a cena. Escrevo pensando em Guernica.
Fiquei fã de Sheila Heti. Eu já tinha lido How should a person be?, mas fiquei surpresa de descobrir que ela já publicou oito livros. Daí dei mais uma cavucadinha e descobri que ela trabalhou com jornalismo e foi editora de entrevistas [quão lindo isso é?] da Believer Mag. Daí comecei a ler a entrevista que ela fez com a Sophie Calle, visitando a artista em uma de suas instalações, e decidi trazer pra cá um trecho.
Abre parênteses porque: Sophie Calle é uma artista que eu adoro, veio ao Brasil em 2009 com uma exposição chamada Cuide de você, as últimas palavras de uma carta de rompimento que um homem escreveu pra ela. Sem saber como responder, ela convidou 107 mulheres a fazerem isso por ela. Fecha parênteses.O trecho, que traduzo livremente a seguir, não fala desse trabalho, mas da dificuldade que Heti tem, e que é minha também, de enxergar as coisas todas sem bambear entre os dois extremos.
IV. Considere um gato
BLVR: O psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi escreveu um livro chamado Criatividade, no qual ele entrevistou um monte de gente do mundo das ciências e das artes, e ele descobriu que enquanto a maior parte das pessoas são introvertidas ou extrovertidas, o artista é ambas as coisas. Simultaneamente opostos. Você acha que é verdade?
SC: [pensativa] Eu não sei. Eu devo ser simultaneamente muitas coisas, mas não porque sou uma artista, porque sou humana. Mesmo o meu gato é muitas coisas.
BLVR: Você pensa em si mesma como um objeto, ou você sente…
SC: Como um objeto?
BLVR: Sim, em volta da gente estão esses objetos que você escolheu para representar diferentes partes de você e da sua vida. Você entende que você é um objeto como as coisas nessa exposição?
SC: Não. Eu não sou um objeto. Sou Sophie Calle, uma artista.
BLVR: Eu me pergunto se você está interessada nessa ideia de “um mundo interior”, porque eu vejo muito do seu trabalho sendo sobre esse mundo exterior—
SC: Isso não é uma coisa que diz do interior? [apontando para um bolo de casamento em cima da mesa] Isso? [uma xícara de café]
BLVR: Bom, eu sou uma escritora de ficção, e pra mim tem essa ideia de que eu tenho um mundo interno onde há essa profundidade, e que fora de mim é o mundo das coisas. Às vezes eu me critico e penso que eu deveria ser mais profunda. Ou mais leve.
SC: Eu não sei o que isso significa.
BLVR: Então não tem diferença?
SC: Não é que não tem diferença. Eu não entendo a pergunta. Pra mim, com as coisas interiores, às vezes pode ser um projeto bobo. Ou pode ter um projeto com ambições mais profundas que não expressa o que eu penso. Você é exagerada - você sempre pensa que é assim ou assim ou assim!
BLVR: [rindo] É verdade. Meus amigos—
SC: Eu não penso assim. Pode ser um trabalho super trágico e eu não sentir nada! Percebe? Não é sobre contar a minha vida, nem sobre dizer a verdade. Não é a verdade, obviamente. Porque quando eu conto uma história, uma hora depois— não é verdade. É uma edição. É encontrar as palavras certas, escrever poeticamente, ter um estilo. Então não é sobre dizer a verdade.
BLVR: A arte em algum momento pode dizer a verdade— a Verdade?
SC: Eu não sei.
BLVR: As pessoas podem dizer a verdade?
SC: A verdade? Que verdade? A sua verdade? A verdade deles? A verdade hoje às duas da tarde em Nova York ou a verdade amanhã às cinco em Paris? A verdade agora que está chovendo? O que significa? Eu diria que as coisas aconteceram ou não aconteceram, mas eu não diria que essa é a verdade.
BLVR: Então como usar essa palavra? Verdade?
SC: Oh, eu não sei. Pergunte pra um filósofo, não pra mim. Esse não é o tipo de pergunta que eu me faço.
Gosto da vulnerabilidade da entrevistadora e da audácia da entrevistada. Mas investi esse tempo traduzindo o trecho porque acho que essa conversa tem um tanto de coisas pra ensinar pra gente sobre o momento que estamos vivendo. Sobre a urgência da gente reivindicar nossa humanidade, nosso direito de ter medo, de estar em luto, de ansiar por lugares seguros. Mas também sobre a nossa cultura esquizo-paranóide, a contribuição da arte pra gente desmontar essa ideia de Verdade. E sobre como o sentido das coisas nunca está dado: ele se constrói do encontro entre Heti e Calle, entre eu e você.
Me conta de você?