Jamaica Kincaid + Noemi Jaffe e o mistério da mãe [que horas, me diga que horas você volta?]
No romance da Jamaica Kincaid a mãe morreu quando nasceu a filha que conta essa história. Minha mãe morreu, ela conta uma primeira vez, e depois reconta 16 vezes ao longo das 180 páginas. Assim: Quando minha mãe morreu... Minha mãe já tinha morrido... Quando nasci minha mãe morreu... Depois que minha mãe morreu... Ela havia morrido no momento em que saí dela... Morreu no momento em que nasci.... Não a conheci: ela morreu no momento em que nasci... Minha mãe morreu no momento em que nasci… O fato de que minha mãe morreu no momento em que nasci se tornou um tema central na minha vida.
Quantas vezes é preciso dizer?
O corpo que tinha a mãe vem contado por outras pessoas: alta (é o que me dizem - não a conheci, morreu no momento em que nasci); o cabelo era preto, os dedos eram compridos, as pernas eram compridas, os pés eram compridos e estreitos com um dorso alto, o rosto era magro e ossudo, o queixo era fino, as maçãs eram altas e largas, os lábios eram finos e largos, o corpo era magro e comprido; seus passos tinham uma graça natural; ela não falava muito. Talvez nunca tenha dito nada muito importante, ninguém nunca me falou; não sei que língua falava; se um dia disse ao meu pai que o amava, não sei em que língua disse isso.
Mãe-mistério. Diz Kincaid: Nunca vi seu rosto, e mesmo quando ela aparecia para mim em sonhos eu nunca a via, só via seus calcanhares, seus pés descendo a escada, os pés descalços, descendo, e eu sempre acordava antes de vê-la subindo de novo. Esticar o braço, nunca alcançar.
O mistério da mãe é um mistério da filha que a mãe foi, é e pra sempre será. Feito aquelas bonequinhas russas, mulheres existindo umas dentro das outras, carregando sementes e perguntas. Quando minha mãe nasceu (foi o que me disseram), a mãe dela a embrulhou em pedaços de pano limpos e a colocou à porta de um lugar onde freiras da França viviam; elas a criaram, batizaram-na como uma cristã e exigiram que fosse uma pessoa quieta, tímida, resignada, crédula, recatada, que desejasse morrer logo. Ela se tornou essa pessoa. O apego, espiritual e físico, que dizem que uma mãe tem por seu bebê, a confusão de quem é quem, carne com carne, aquela inseparabilidade que dizem existir entre mãe e bebê - tudo isso estava ausente entre minha mãe e a mãe dela, e tampouco existiu entre mim e minha mãe, pois ela morreu no momento em que nasci.
Quantas vezes é preciso dizer?
A repetição não como erro, mas tentativa.
A mãe falta também em Lili: novela de um luto, da Noemi Jaffe. Essa aos 93 anos, três filhas, netos, e ainda a mãe. O que é ser mãe? Ser mãe. Sei que minha mãe era mãe. É mãe. Às vezes sinto que ser mãe é ouvir essa palavra, que basta isso para transformar uma pessoa em mãe. Transformar uma pessoa em mãe, eu disse. Como se não bastasse ser uma pessoa para ser mãe. Mãe é diferente de pessoa. E mais para a frente, uma cena em que, revirando as coisinhas-dela, vem falar de mistério: quais será que eram os segredos da minha mãe? Os segredos da mãe, uma interdição para as filhas. Ideia de que mãe não pode ter segredos. Um segredo lindo, colecionar guardanapos. Provavelmente eu o inventei, mas vou tratar disso como uma verdade possível.
Tentar pegar a história na mão. Penso na criança que passa uma tarde inteira dentro do rio tentando colocar um alevino dentro do balde. A mãe, feito o bicho vivo, essa me parece que sempre escapa entre os dedos. Penso no que li certa vez de uma psicanalista que gosto, a Ana Suy: quando se trata de amor não há adultos, quem ama é sempre o infantil que nos habita. E penso no Chico Buarque cantando Você, você, olha que lindo:
No sonho de quem você vai e vem
Com os cabelos que você solta?