Storm Jameson, a mulher que chamou o vento
Seguindo aqui com o projeto de conversar com outras pessoas para além da minha bolha quarentênica e das redes sociais, apesar das dificuldades de pensar, viver, dormir, sonhar que estão colocadas. Se você está chegando agora, te conto: eu escrevo aqui sobre vida criativa, voz e autoria de mulheres, tendo sempre como ponto de partida alguma leitura que me atravessou.
Hoje eu venho falar de Storm Jameson, mas antes de chegar nela eu preciso passar pela Vivian Gornick, que me arrebatou com Afetos ferozes, já te contei? Sua narrativa, que conta da vida vivida e da vida não vivida das mulheres, foi a que encerrou o percurso de cinco encontros que me fez estar entre 16 mulheres maravilhosas nos primeiros três meses desse ano dois de pandemia.
O livro, eu acho, cumpriu lindamente a missão de ajudar a gente a pensar nos afetos que se tecem entre mulheres que chamamos de mães e mulheres que chamamos de filhas. Mas não só isso: também a história de uma mulher que está tentando encontrar a sua voz e o seu lugar no mundo. Mais não falo, porque acho que todo mundo precisa ler, e se te faltava algum encorajamento, taí: eleito pelo New York Times o melhor livro de memórias dos últimos 50 anos.
Foi por querer saber mais de Gornick que cheguei em Storm Jameson, uma escritora que viveu na mesma época de Virginia Woolf e a turma que circulava ali por Bloomsbury, mas de quem eu nunca tinha ouvido falar. Conta Gornick que presenteou sua mãe, a quem bem conhecemos em Afetos ferozes, com Journey from the North, a autobiografia em dois volumes de Jameson, e que ela começou a escrever já aos 70 anos.
Quando retornou à casa da mãe e a encontrou lendo, perguntou o que estava achando. É como se ela estivesse aqui na sala comigo, foi a resposta. E também: “eu vou sentir saudade quando tiver terminado”. Quando terminou a leitura, Gornick deu à mãe um dos 45 romances da autoria de Jameson Uma semana depois, a mãe contou: “não sei porque, mas esse livro não é nada comparado àquele outro. Não é poderoso, nada poderoso”.
Storm nasceu Margareth Ethel no ano de 1891 numa família da classe trabalhadora de Whitby, uma cidade portuária no norte da Inglaterra. Tinha um pai que, quando presente, era praticamente mudo, e uma mãe de cabeça quente que odiava o marido, batia nas crianças e reclamava da vida. Jameson só não teve o mesmo destino dela porque conseguiu uma bolsa para estudar na Universidade de Leeds, se engajou no movimento socialista e descobriu seu talento com as palavras.
Foi na faculdade que se apaixonou por um homem, foi forçada a se casar e com ele teve um bebê. Quer dizer, ela teve um bebê. Por cinco anos viveram os três, infelizes ever after, até que ela decidiu embarcar sozinha para Londres, onde mudou o nome, arrumou emprego como jornalista e começou a trabalhar no seu romance. Escreveu compulsivamente, um livro por ano, inebriada pelas infinitas possibilidades que cada projeto guardava em si. Mas seus textos eram mal construídos, esquecíveis, inúmeros personagens não existindo para além de garantir que a autora provasse seus argumentos.
Jameson já tinha uns 50 anos quando se deu conta disso. Foi se retraindo, destruiu parte de seus arquivos, quis desaparecer da face da Terra. “Se eu ao menos pudesse começar de novo!”, escreveu ela em seus diários. Para a sorte de Gornick, ela conseguiu. Com Journey from the North abriu mão da ideia de causar uma boa impressão, colocando-se no centro da narrativa - não mais dissertando sobre a economia, a política, as diferenças entre homens e mulheres, mas sobre como essas coisas todas atravessaram a sua existência. Gornick chama a atenção para a voz, uma honestidade brutal que a permitiu reconhecer que nem tudo sabia, mas que havia uma intenção de verdade, e é isso que conta.
É na escrita de Journey from the North que Jameson descobre que nunca pôde deixar sua mãe, porque tinha se tornado ela, sua também a tristeza, o desprezo, o medo mortal à intimidade, os rompimentos abruptos, a incapacidade de reconhecer as necessidades de sua própria filha. É escrevendo que ela descobre que o seu pranto pela mãe e sua vida não vivida era o choro por sua própria vida.
Eu gosto que quem me apresenta Jameson seja Gornick. Antes de Afetos ferozes, ela ganhou a vida escrevendo ensaios, mas queria mesmo era transformar as histórias que contava aos amigos num romance capaz de a colocar no time seleto dos escritores de ficção. Por mais que se esforçasse, entretanto, o texto se recusava a ganhar vida. Foi já passando dos 30 anos que Gornick entendeu que tinha nascido para a memória. Um pouco mais cedo do que Jameson, para nossa sorte.
(o texto é meu, com uma costura de um artigo da Vivian Gornick sobre a Storm Jameson publicado na Harper’s Magazine. Afetos ferozes foi publicado nos Estados Unidos em 1987, mas chegou ao Brasil só em 2019, graças à todavia. Além desse texto, estou escrevendo um bem a sério, artigo mesmo, para pensar na mãe morta de André Green - não sei se sabes, mas tô no ano dois da formação em psicanálise, comecei a estudar análise de grupos e entrei num projeto social para ouvir as pessoas que estão vivendo em situação de rua. Olhando daqui, enquanto te conto, penso que eu chamei o vento também)
E você? Vamo chamar o vento?