time análise
associações livres sobre a escrita, a literatura, o mercado literário e a vida das mulheres que escrevem
Há alguns dias saiu por aí a notícia de que a Alice Munro, escritora reconhecida com Nobel e tudo o mais, fez vista grossa para o abuso que o seu marido, padrasto das suas filhas, fez a uma das meninas. Li por cima, pois estou de férias, e o mais urgente é caminhar, me perder e me achar pelas ruas dessa cidade que estou amando profundamente. Fiquei pensando nas mulheres quebradas sobre quem Munro escreveu, mulheres demasiadamente humanas, como somos eu e você.
Penso em Munro e penso em uma das tantas frases que grifei do Melhor não contar, o livro novo da Tatiana Salem Levy, que saiu pela todavia. Nele a narradora conta de seu padrasto talentoso, reconhecido, carismático, por quem a mãe era apaixonada, e que a abusou quando ela tinha nove anos. “Na intimidade ninguém é tão legal assim”, diz ela, sobre o padrasto, e sobre tantos outros homens com os quais se relaciona.
Não tem nada de poético, nem novo nisso, entretanto alguma coisa se passou entre a gente que fez a gente esquecer disso: na intimidade ninguém é tão legal assim. A gente não pensa tão bem assim quanto se pensa. A gente também é onde não pensa.
Seria possível escrever muitas coisas a respeito do livro da Tatiana, e nos cruzamentos com a notícia sobre a Munro, sobre as coisas que ditas a partir do testemunho da filha do que lhe passou: entre ela e o padrasto, que a abusou; entre ela e o pai dela, primeiro marido de Munro, que sabia de tudo por estes anos todos em que a mãe dela não soube; entre ela e a sua mãe, para quem ela contou tudo quando tinha 21 anos. Mas é verdade também que eu gosto cada vez mais da análise, no lugar das sínteses. E as análises nos tomam, ou pelo menos deveriam, nos tomar um tempão.
Talvez tenha a ver com o fato de hoje eu ter um ofício que é o da escuta. Falar o que? Para que? Cada história é única. Desencontros, ausências, abandonos, intrusões, mal entendidos cavam esse buraco do indizível, outra expressão que empresto da Tatiana Salem Levy. A pressa no dizer me assombra.
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Há alguns meses estou traduzindo o conto Vestido Vermelho da Alice Munro, que ela escreveu em 1946, e que faz parte do seu primeiro livro, Dance of the happy shades. É um conto, dos tantos, que fala sobre meninas e mulheres, mães e filhas, sobre crescer e se deparar com o buraco do indizível. Breve circulo esta pequena traição (tradução = traição) por aqui.
No lugar disso, ocupo meu tempo traduzindo livremente, ano a ano, alguns dos momentos memoráveis da literatura no último quarto de século. O trabalho é da Tina Jordan, editora do NYT, então tem zero coisas sobre a parte que nos cabe aqui em Brasil. E se isso vai fazer sentido para mais alguém, bem, sempre uma aposta.
2000
Phillip Roth, Saul Bellow e John Updike publicam novos títulos, e os trabalhos ocupam um grande espaço na crítica, mas não vendem tão bem assim. Efeito Harry Potter? Para Roger Straus, presidente da Farrar, Straus & Giroux, a explicação é outra: “eles estão ficando velhos e, lá pelo 34º título, as pessoas começam a se perguntar: e daí?”
2001
O romanção As correções, do Jonathan Franze, cai nas graças de Oprah Winfrey, que o escolhe para o seu clube do livro. O autor, torcendo o nariz por tomar parte desse projeto, acaba desconvidado
2002
Três anos após sofrer um acidente gravíssimo, Stephen King anuncia que vai parar de escrever. Desde então ele publicou pelo menos 30 novos títulos. No mesmo ano, 15 livros de autores estreantes vendem, juntos, mais de 100 mil cópias, dentre os quais The nanny diaries, de Emma McLaughlin e Nicola Kraus, e The lovely bones, de Alice Sebold, ambos adaptados para o cinema.
2003
O não estreante Dan Brown publica O código Da Vinci. Esse sim estoura, e vai ser o livro mais vendido dos próximos dois anos, e vai virar filme também
2004
Vendem muito bem livros sobre sexo: dois de memórias, abordando temas como sexo anal, e ensinando qualquer um a fazer sexo como uma estrela de cinema pornô, e um terceiro de ficção.
Neste ano, dos cinco finalistas do National Book Awards, um vende 2,5 mil cópias, três somam entre 700 e 900 exemplares cada, e o outro 150 cópias.
2005
A Saga Crepúsculo proporciona um revival para as histórias de vampiros.
2006
A editora Harpers Collins demite a editora que negociou os direitos de publicação do livro de memórias de O.J. Simpson, If I did it [em português, Se é que eu fiz isso]. O livro foi publicado em 2008.
James Frey, autor de A million little pieces, admite que inventou partes da sua narrativa, apresentada como um livro de memórias e toma um esculacho de Oprah ao vivo: “você traiu milhões de leitores”.
2007
Doris Lessig descobre, por conta dos jornalistas apinhados na porta da sua casa, em Londres, que ganhou o Nobel de Literatura.
A Amazon lança o primeiro Kindle, e vendem todo o estoque em cinco horas.
Harry Potter e as relíquias da morte, o último da série, vende 11 milhões de cópias.
2008
Suzanne Collins lança a saga Jogos vorazes e marca o caminho de outras distopias para jovens adultos.
2009
Barrack Obama flerta com o trabalho dos influencers, publicando pela primeira vez a lista de suas leituras de verão.
2010
Seis anos após sua morte, Stieg Larsson, autor da trilogia Millenium, se torna o primeiro autor a vender 1 milhão de ebooks na Amazon.
A autobiografia de Mark Twain é publicada cem anos após sua morte, conforme seu pedido.
2011
Celebridades como Tina Fey, Amy Schumer, Seth Rogen e Sarah Polley publicam seus livros de memórias.
A HBO começa a filmar Game of Thrones, de George R.R. Martin.
A Borders declara falência. Por 40 anos a rede foi a principal no comércio de livros nos EUA.
2012
Gillian Flynn, com Garota exemplar, lança duas tendências no mundo literário: tem uma narradora mulher e não confiável; leva no título a palavra garota. O livro vira filme.
2013
A fusão da Penguim com a Random House abocanha 25% do mercado estadunidense.
2014
Para a surpresa geral, O capital, catatau de 704 páginas de Thomas Piketty, é um dos livros mais vendidos do ano.
Cinquenta tons de cinza é lançado e vende mais de 100 milhões de cópias.
2016
A febre dos livros para colorir.
Para duplo espanto geral da nação, o cantor e compositor Bob Dylan ganha o Nobel de Literatura por seu trabalho com a poesia, mas não vai à cerimônia de premiação alegando ter outros compromissos.
A outra febre é a napolitana: Elena Ferrante chega a 5,5 milhões de cópias vendidas no fim desse ano.
2017
Uma semana após Trump ser eleito, o clássico 1984, que George Orwell publicou em 1949, volta ao ranking dos mais vendidos.
Reese Witherspoon lança seu próprio clube do livro.
2018
A autora de ficção científica Ursula K. LeGuin morre. “Nós lemos livros para descobrir quem somos”, ela disse.
2019
Margaret Atwood publica Os testamentos, continuação de seu romance O conto da aia, que em 2017 virou série televisiva numa produção da HBO.
Morre a escritora Toni Morrison, Nobel de Literatura de 1993.
2020
A pandemia alavanca a venda de livros impressos em 8% em relação a 2019.
Autora de American Dirt, um romance sobre imigrantes mexicanos, Jeanine Cummins fica no centro de uma discussão sobre apropriação cultural: quem pode contar uma história?
Livros sobre a gestão Trump no topo da lista dos mais vendidos.
2021
A empresa que cuida do legado do autor infantil Dr. Seuss retira de circulação seis de seus livros, publicados entre 1937 e 1976, sob a justificativa de que retratam pessoas de maneiras dolorosas e erradas.
2022
Mais de 30 anos depois do aiatolá Ruhollah Khomeini conclamar a morte de Salman Rushdie, o autor é esfaqueado no palco de um evento literário que acontecia em Nova York.
O segmento de audiobooks traz US$ 1,8 bilhão para o setor.
Spare, o livro de memória do príncipe Harry, se torna o livro de não ficção mais vendido de todos os tempos.
Romances de Agatha Christie, Ian Fleming e Roald Dahl são revistos por conta de sua linguagem ofensiva.
2024
A família de Gabriel García Márquez publica o último romance do autor - que, antes de morrer, em 2014, pediu que este texto fosse destruído.
Os efeitos da inteligência artificial, sobretudo no que diz respeito à infração de direitos, passa a preocupar a indústria.