Today’s special: mexido de Katie Roiphe + Rachel Cusk
Ei, você! Como está indo? Já vacinou? O que tem feito de bom pra esquecer as crises todas, socorro?
O prato do dia, aqui um domingo de sol lindo, é um mexidinho com as sobras da semana. Resultado das minhas minhocações lendo The power notebooks, de Katie Roiphe, com outros pensamentos que me acompanham desde que ouvi a entrevista que a Rachel Cusk concedeu para a Shakespeare and Company sobre a sua trilogia - que, quero dizer se ainda não disse, ainda faz um barulho imeeeenso aqui.
Começo com Roiphe. Não a conhecia, e achei curioso que a semana em que ouvi seu nome foi também a semana em que a Janet Malcolm morreu, e eu descobri que foi a Roiphe quem entrevistou a Malcolm para a Paris Review. Comecei a ler The power notebooks gostando muito: sua meditação sobre o poder não tem nada a ver com geopolítica ou as vastas desigualdades e violência. No lugar disso, a atenção às dinâmicas entre amigos, estranhos, gente com quem temos intimidades, e como estas relações também alicerçam, perpetuam a nossa cultura.
Roiphe conta que The power notebooks não se parece com nada que já tenha escrito, porque pela primeira vez ela se autoriza a não defender um ponto de vista, mas a pensar no papel, dando voltas e se contradizendo, acerca dos problemas que lhe tiram o sono: “as particularidades da minha vida profissional, ou da minha vida amorosa, ou da minha vida como mãe, que não são mais ou menos interessantes do que a de qualquer outra pessoa”. Particularidades, diz ela, que vistas mais de perto desmontam as suas certezas, já que revelam muito mais ambivalências, muito mais ambiguidades.
Pausa porque essa semana, numa aula, aprendi a distinção entre:
::. ambivalência - quando migramos de uma ponta a outra, bem-mal, feio-bonito, amor-ódio, sem caber nada no meio.
::. ambiguidade - quando o sentido de uma palavra não está necessariamente dado. O que é bem ou mal pra mim às 9h16 do domingo, ano dois de pandemia, é diferente do que é bem ou mal pra mim na terça-feira de Carnaval de 2020 (sdds Carnaval).
Gosto muito de como Roiphe problematiza as coisas. Por exemplo como algumas mulheres se expressam na literatura. Ela menciona Virginia Woolf, Zadie Smith, Mary McCarthy, Roxane Gay, Joan Didion. “A pressão para que nós mulheres sejamos honestas parece significar que a honestidade tem a ver com sermos vulneráveis, mostrando fraqueza, desorganização, seja porque revelamos abusar do álcool ou, digamos, que choramos na rua, quem sabe sofremos de um transtorno alimentar ou depressão. Mas alguma coisa em mim resiste. Na maior parte dos meus escritos, o eu que escreve não desperta simpatia, empatia ou piedade. É uma voz furiosa, que não me representa integralmente, mas é meio que julgo mais apropriado para levar minhas ideias: um veículo, um tanque. Muitas pessoas acham essa voz desagradável. Interpretações, opiniões ou visões de mundo são melhor recebidas quando o autor as acompanha de um eu tô zoada para diminuir a chance de ser lido como arrogante ou presunçoso. Especialmente se é uma mulher”.
Continua Roiphe: “não estou sugerindo que qualquer uma dessas escritoras escolheu conscientemente essa estratégia. Inclusive que todas nós acabamos capturadas em algum momento da vida por esta mesma força. Como quando, por exemplo, não acolhemos um elogio, ou tiramos sarro de nós mesmas, ou nos questionamos em voz alta sobre o que nos torna especiais, antes mesmo que a pergunta surja na cabeça de outra pessoa”.
Aqui entra Cusk. Na entrevista para a Shakespeare and Company ela conta como foi que surgiu o projeto literário que veio a dar nas 584 páginas de Esboço, Trânsito e Mérito (os três são livros publicados aqui pela todavia edições). Vou tentar resumir sem dar spoiler: na trilogia Cusk conta a história de uma mulher, Faye, que é uma escritora, e embora a narrativa se desenrole em primeira pessoa, bem, é difícil entender quem ela é e o que pensa. Mas como foi que Cusk, tendo escrito sobre dois livros de não ficção, um sobre a experiência de ser mãe (A life’s work: on becoming a mother, de 2001), o outro sobre o fim de um casamento (Aftermath: on marriage and separation, de 2012), veio conceber num projeto desses? Tamanha contenção?
Cusk estava cansada, amores. Cansada de ser vista como a mulher que tem uns problemas sendo mãe.
“Eu entrei em águas perigosas escrevendo essas memórias. Não sei como os outros escritores lidam com as críticas, mas o que eu sofri foi um ataque extraordinário. Então, sim, houve uma razão para repensar a questão do eu. Como falar sem me apresentar como um alvo? Eu quis sair desse lugar, um Jesus que se coloca na frente e convoca as pessoas a fazerem o seu pior comigo. Eu acho que Knausgard faz o mesmo, mas porque ele é homem, branco, escandinavo, não é tão interessante assim como alvo”.
Retorno para Roiphe. Roiphe que, oh, my, foi cancelada por se posicionar sobre o #metoo. Seus algozes? O movimento feminista. Confesso: nem fui olhar muito para o que é que ela tinha dito, pra tentar não deixar crescer a vontade de largar o livrinho que está me fazendo tão feliz… E então cheguei. Um relato da noite que ela passa acordada, vendo pessoas, incluindo editores de respeitados periódicos, chamarem-na de lixo, monstro, suck my dick, fazerem máscara de Halloween com seu rosto. A ofensiva dura dias, semanas.
“Uma fantasia recorrente: tomar café com um estranho que me detesta. Quem sabe alguém com um emprego na The New Yorker ou na The New Republic e que tem livros da Elena Ferrante na mesinha de cabeceira. Quão difícil seria odiar uma pessoa de verdade que ri pra você ou tem pelo de cachorro no suéter? O que acontece quando duas pessoas se encontram com um ódio que não tem corpo?”. Roiphe conta que a historiadora Mary Beard, autora de Mulheres e poder - um manifesto, escreveu emails longos para os seus haters do twitter, tornando-os seus amigos. "Ela é incrivelmente racional, incrivelmente compreensiva. Ela é tudo, menos furiosa”. Beard também postou uma foto sua chorando após ler alguma ofensa nas redes sociais. A legenda dizia “se você quer mesmo saber, estou sentada aqui chorando”. A manada no twitter vocifera: lágrimas de crocodilo.
Ainda não terminei o livro de Roiphe. Mas sei que não parou de escrever. “Eu converti todo o ódio em poder”. Pra mim ainda é uma questão gigantesca essa de não dar a mínima, seguir adiante. O que brilha, antes, e urgente, é o desejo de assumir que, antes de ser parte da solução, mas sou parte do problema. Eu sou, somos as engrenagens, e nós também as pessoas capazes de nos desarmarmos, palavra a palavra, gesto a gesto, na relação uns com os outros. É um caminho tortuoso, mas me parece o único que vale a pena trilhar.