um texto radicalmente pessoal, como todos os outros
Oi, você:
Anteontem estive numa roda de mulheres e falamos sobre Stabat Mater, essa peça incrível da Janaina Leite, e eu quis muito escrever, mas acabei tomando uma cerveja enquanto lavava as verduras. Eu queria escrever sobre como a Jana faz arte a partir da própria vida, uma coisa que está ancorada no que o Foucault chamou de coragem da verdade. Ontem eu quis escrever de novo, mas eu estava cansada demais. Hoje eu não quero, mas eu preciso escrever. Se não escrever, hoje eu não vivo.
Ontem, um pouco antes de ver que minha filha tinha uma bola de sangue e pus na gengiva, eu fui visitar minha mãe. Eu precisava dividir com ela as verduras que lavei anteontem. Não queria entrar, mas ela insistiu, então me sentei na sua sala e ela me contou desse programa que assistiu na tevê. Fiquei ali ouvindo, celebrando em silêncio a sua transformação, tantas, até estarmos ali bem na frente uma da outra, ela entusiasmada com a possibilidade de com as próprias mãos regenerar a terra e nela plantar feijão e couve e tomate e lavanda e milho. Eu disse pra ela que tenho, temos, pensado nisso também, que lugar é esse em que vamos passar os próximos anos. Mas, mais do que isso: com quem vamos atravessar esses dias e noites. Minha mãe disse que ela já sabe que é com a gente e eu gostei muito de ouvir e de pensar nisso e agora tô sorrindo de novo. Voltei pra casa com a sacola vazia de verduras, mas cheia de biscoitos e chocolate que ela mandou para as netas. Voltei porque precisava cuidar da minha filha, a gengiva com a bola de sangue e pus que minha mãe não sabia existir, porque eu decidi cuidar da minha mãe como eu decidi cuidar da minha filha.
Com a filha no carro, atravessamos a cidade, e num dos tantos faróis em que paramos tinha uma menina menor do que a minha, e entre os carros ela vendia balinhas, e eu chorei, mas era preciso estar ali pra ela, a filha, que precisou drenar a bola de sangue, então eu sequei minhas lágrimas. Stabat Mater, eu não falei disso antes, mas é chegada a hora, é um trecho de um poema do século 13 que louva a permanência da mãe Maria aos pés do filho que sofre.
Ontem eu fiquei com a minha filha ali, onde ela me precisava, do jeito que eu pude, mas eu não quero falar muito mais sobre como foi isso, porque eu ainda estou muito cansada. Eu quero dizer que hoje cedo acordei com o meu corpo de mãe todo doído, e que eu chorei na mesa do café quando ouvi falar em capitalismo de plataforma, mas que o verão parece que ainda não foi embora de vez, então eu sentei pra escrever essas palavras que me ajudam a continuar viva. Depois que eu parar de chorar, com a coragem da verdade, eu vou ligar para a minha mãe e vou contar o que eu não contei ontem. A coragem da verdade, quero anotar aqui as palavras da Janaina, não é uma atitude discursiva, não visa provocar um efeito sobre o outro. A coragem da verdade é, no máximo, uma atitude. Não se fica impune ao pronunciá-la.
Eu me releio mil vezes aqui, ajusto as palavras, quero fazer com a coragem da verdade, sem a intenção de provocar efeito nenhum em ninguém mais do que em mim mesma. Com este texto eu só quero ficar viva um dia a mais, torcendo pra encontrar breve a terra que espera por nós: minha mãe, minhas filhas, eu, e todas nós.
Em tempo:
::. Para quem não conhece: Stabat Mater é uma peça de teatro, mas seu texto foi publicado pela Editora Javali. Junto dele, tem também Conversas com meu pai, outro trabalho bem premiado dela. Recomendo vivamente. Jana é autora ainda de Autoescrituras performativas: do diário à cena e esse título foi publicado pela Perspectiva.
::. Assisti Stabat Mater em fevereiro do ano passado. No mês seguinte, às vésperas de fechar tudo, Jana se apresentou na Mostra Internacional de Teatro e a partir do seu trabalho rolaram várias atividades, dentre as quais um debate sobre o corpo da mulher, suas representações e a coragem da verdade. Recomendo muito - https://youtu.be/fpdTFu905rs