((pequenas traições)) - escrever o que não se sabe com Leslie Jamison
((a série pequenas traições é resultado de minhas investidas nessa arte de traduzir, absolutamente provocada que fiquei pela Laura Wittner em seu Viver e traduzir. Traduzir, diz ela, para tentar possuir o texto que te possui. Traduzir como uma decisão, um pecado, um risco. Tradução como um roubo. Ressurreição. Assinado: a editora))
Em fevereiro Leslie Jamison conversou com Brad Listi, do podcast Otherppl, sobre seu novo livro, Splinters - another kind of love story. É a partir dessa conversa que o biscoito da sorte escreveu esse texto. Você pode ouvir ele na íntegra, se quiser.
E/OU: pode continuar lendo esse texto.
Splinters ainda não chegou aqui, mas de Jamison já foram publicados pela editora Globo outros quatro trabalhos, dos quais três são ensaios: Exames de empatia, Deixe que grite, deixe que queime e A reabilitação. Embora também seja autora de um romance (O armário de bebidas), é por causa da não ficção que a estadunidense passou a ser lida - ela que, a cada trabalho, renova essa negociação que William Zinsser vai dizer ser a maior contribuição que um texto de não ficção pode oferecer a um leitor:
mais do que contar uma história, dizer da relação que aquele que conta tem com aquela história, e por quais motivos nos conta.
No caso de Jamison, a história são muitas, e todas partem das suas experiências, a sua vida vivida: a relação com o álcool, com os homens, com a escrita e, mais recentemente, em Splinters, investigando esse período de fim do casamento e o nascimento da primeira filha. Os textos, claro, são muito mais ricos do que essas três, quatro linhas aí de cima dão conta: ela diz que cada projeto traz o desafio de avançar para além da versão que se conta num elevador - em inglês, a versão cocktail party da história.
“Sempre que eu estou escrevendo, seja um livro todo, ou mesmo um ensaio, escrevo desse lugar de urgência, portanto as coisas não têm uma forma certa ainda”. Esse seu jeito de funcionar, ela pensa, nunca a deixa confortável diante da tarefa. “E eu nem acho que deveria. Fazer arte, pelo menos para mim, é sentir esse impulso de pensar em como fazer alguma coisa que não exatamente eu fiz antes. Enquanto eu não estiver me fazendo essa pergunta, eu sinto que eu não estou no caminho certo”.
Dá trabalho pensar sobre aquilo que ainda não se pôde pensar sobre o vivido, um pensar que se faz escrevendo, suportando a bagunça do rascunho. Um outro tipo de trabalho é esse se debruçar impiedosamente sobre as palavras, para tentar escrever, a cada frase, a melhor frase possível. Para que, no fim de tudo, o texto diga não só de um sobre si mesmo, mas também sobre algo que compartilhamos.
Listi lembra a autora de que a escrita autobiográfica, essa que desloca o eixo de si para fora de si, tem vivido sua era de ouro, tendo como seu maior expoente o norueguês Karl Ove Knausgård. Com a diferença de que os trabalhos das mulheres que se enveredam por este gênero literário, diferente de homens como Knausgard, são lidos como menores. Simples, ambicioso, ingênuo, autocentrado, visceral, limitado, cru, mas também sensível e corajoso são adjetivos comuns a seus textos - em contraste com o “grande, incrível trabalho [dos ficcionistas] de inventar histórias”, diz Leslie Jamison.
Como se a forma como as mulheres experimentam o mundo não fosse de interesse da arte. Como se a ficção valesse mais do que a não ficção. Como se a não ficção produzida pelos homens valesse mais, porque apenas os homens podem tomar distância da realidade para falar disse que se pretende ser a Realidade: TODA. Como se a Realidade existisse.
A propósito disso que chamamos não ficção (com a ajuda de David Shields)
A escrita foi inventada por volta do ano 3.200 a.C, com a finalidade de fazer listas e cálculos. A escrita da contação de histórias vem um tanto depois, remontando às Vedas, escrituras sagradas hindus (1.400 a.C). O mais antigo manuscrito do Velho Testamento é do ano 150 a.C. No Novo Testamento, os Evangelhos de São Mateus, São Lucas, São Marcos e São João foram escritos num período que se distancia de 40 a 110 anos dos eventos relatados.
Tucídides foi o primeiro historiador moderno. Acompanhou, diretamente ou de perto, grande parte da guerra do Peloponeso, que durou 27 anos (431 a 404 a.C.), e envolveu praticamente todo o mundo helênico. Autor de A história da guerra do Peloponeso, Tucídides era perito em assuntos de guerra, e foi cuidadoso tanto no levantamento dos dados quanto nas escolhas estéticas. Seu texto é preocupado com a variação de velocidade e ordem no relato (ora resumo, ora descrição pormenorizada, flashbacks e antecipações), apresenta perspectivas diversas e diversas maneiras de representar pensamentos e discursos, inclusive com a criação de diálogos.
Fim da breve digressão, para voltar a Leslie Jamison, que comigo pensa que a não ficção pode mais do que almejar retratar a Realidade. Que pode, nessa interlocução com a arte, emprestar recursos da criação literária para oferecer uma experiência de prazer com o texto. Em tempos de tanto se dizer sobre tudo, de tanta mentira e de busca da verdade, quem sabe é pela via do prazer que a gente, também a gente, consegue se deslocar desse eu que tanto sabe para reconhecer a diversidade de possíveis coabitando o mundo?